Para a rua, um pequeno portão aberto a qualquer transeunte, alguns passos e uma grande escada de concreto. Ao descer, um amplo pátio e, em torno dele, algumas casas. Do lado esquerdo, um castelinho de três andares e arquitetura única: passarelas, escadarias em lugares inusitados, colunas neoclássicas, esculturas de formas humanas, carrancas e sacadas. Ao redor, casas menores, sobrados que rodeavam todo o terreno e, ao meio, uma piscina desativada que vai enchendo de água espontaneamente de tempos em tempos – é banhada pela nascente do rio Itororó. O ribeirão do Itororó verte por diversos pontos da Vila, mas boa parte dele é canalizada e escoa para os fundos, na Av. 23 de Maio, desaguando no ribeirão do Anhangabaú. O pátio central da Vila era palco, arena, salão, quintal, quadra, ateliê, museu, ocupado das mais diversas formas. Aberto 24h aos pedestres, só não aos carros. Na contramão dos condomínios fechados, das vilas com seus portões e das ruas privatizadas, era ali a realização plena do sentido da palavra público. O que garantia a sensação de segurança era o fato de todos se conhecerem, de ocupar o espaço, de fazer uso dele; de os moradores não se encerrarem nos seus lugares privados.

Construída na década de 20 com alguns elementos recuperados do incêndio que atingiu o teatro São José, a Vila Itororó foi concebida como espaço de moradia, composta por um palacete e 37 casas em seu entorno, para que seu proprietário, o tecelão Francisco de Castro arrecadasse através de pagamento de aluguel. Diante da morte de seu construtor, a vila foi a leilão para o pagamento de credores e, na década de 70, acabou doada para a Santa Casa de Misericórdia da cidade de Indaiatuba, no interior de São Paulo. Até a década de 90, todos os seus moradores pagaram seus respectivos aluguéis, até o instante em que a própria Santa Casa determinou a interrupção das cobranças em 1997. Neste contexto, que caracterizaria com o passar dos anos como usucapião urbano, defendendo as moradias e a posse legítima de tais imóveis por parte de seus moradores, em 2006 a prefeitura de São Paulo na gestão de José Serra assinou um decreto transformando a vila em espaço de utilidade pública para sua posterior desapropriação.  Os moradores resistiram e ingressaram com uma ação de usucapião que, a passos lentos tramitava, diante da velocidade com que a ação de despejo se desenvolvia.  Mais uma vez, a “utilidade pública” era apontada contra o interesse público, contra os legítimos moradores da Vila Itororó.

Em 2006, fora apresentado para a prefeitura um projeto alternativo que previa a construção de dois prédios ao lado da própria Vila, no intuito de desadensar as casas, promover o bem-estar dos moradores e garantir a permanência de todos no local. A proposta alternativa comprovava a possibilidade de restauro da Vilta Itororó sem a necessidade de retirar os moradores de lá. O projeto nunca foi considerado.

Em anos de intensa mobilização pela permanência em sua própria casa, pelo direito de habitar a cidade, eles – que eram a história, a memória, o patrimônio imaterial daquela vila – foram despejados. A maioria dos moradores entrou em um programa habitacional e passou a morar em apartamentos que serão pagos por eles mesmos, financiados por algumas décadas. A única vitória que tiveram foi a possibilidade de ainda morar no centro, em blocos de moradia a alguns quarteirões da Vila, fato raro na cidade.

A remoção de boa parte dos moradores para os blocos de moradia no entorno aconteceu no fim de 2011. O dia do despejo parecia um cenário de guerra. Dezenas de trabalhadores da prefeitura com uma camiseta amarela do programa “Cidade Limpa”, acompanhados de “assistentes sociais”, estavam em todo o pátio, removendo os móveis e encaixotando os pertences dos moradores para agilizar a mudança. As crianças davam as últimas voltas com suas bicicletinhas no pátio da Vila e falavam assim: “Amanhã não vamos ter mais esse lugar pra brincar, vai ser no apartamento!”.

No início de 2013, foram despejadas as últimas famílias, antes mesmo da data prevista para seu atendimento habitacional. A ação foi marcada pela presença maciça da Polícia Militar, que logo às seis da manhã fechou as ruas do entorno, cercou todos os acessos e barrou qualquer entrada até que fosse efetuado o despejo.

Hoje, a Vila está vazia e guardada por seguranças, cercada de tapumes cromados em suas entradas que “protegem” o empreendimento em reforma, restauração ou “revitalização”.

A tendência é termos em alguns anos, mais um lançamento espetacular na cidade, o Centro Cultural Vila Itororó, com seus controles, seguranças, curadorias, horários e claro, muita especulação imobiliária. Logo mais estará toda iluminada. Sons de taças substituirão o riso das crianças, as festas no pátio e as conversas no portão, encerrando seu uso autônomo e popular. A cultura e a prática dos antigos habitantes era o patrimônio imaterial da Vila Itororó que, por conta de interesses de gentrificação, está sendo substituído por uma conceito de cultura museificante travestido de aberto, participativo e dialógico.

A cidade, história, memória e os moradores perdem. As empreiteiras agradecem.

VIla Itororó